Viver: há vida antes da morte?
- JORGE MARIN
- 1 de jun. de 2019
- 2 min de leitura
Atualizado: 27 de fev. de 2022
A grande preocupação de resenhistas de filmes, que é oferecer spoilers, parece inevitável em Viver, de Akira Kurosawa, que tem início com uma radiografia do estômago do protagonista da história e um alerta de que “a esta altura, ele ainda não sabe que tem câncer”.
De fato, o sr. Watanabe, chefe do setor de relações públicas da prefeitura de Tóquio, parece não perceber o que se passa à sua volta. Obcecado pela tarefa de aplicar o seu carimbo para autenticar os documentos que passam pelas suas mãos, o que faz na realidade é não fazer nada, ignorando ou solenemente “enrolando” os contribuintes que comparecem ao setor para fazer reclamações.
Faltando ao serviço pela primeira vez em muitos anos, o sr. Watanabe recebe a notícia de sua doença, e se desespera, menos pelo anúncio evasivo do médico, mas sim pela exata descrição de seus sintomas por um homem inoportuno na sala de espera que lhe dá menos de três meses de vida (o médico não fala, mas acredita que o homem viverá pelo menos mais seis meses).
Voltando mais cedo para casa, após quase ter sido atropelado por um caminhão, o velho chefe fica ajoelhado no escuro, até escutar sem querer a conversa de seu filho e sua nora que planejam, sem saber da doença, usar a herança e a poupança do pai. A cena que fecha a primeira meia hora de filme é muito triste e marcante: o idoso chora debaixo do cobertor para ninguém ouvir enquanto a câmera mostra na parede uma condecoração por vinte e cinco anos de ótimos serviços prestados”.
Sozinho, o burocrata resolve beber e, em um bar, encontra um escritor que resolve guiá-lo por lugares onde o homem nunca tivera coragem de viver até aquele momento: salas de pachinko (maquininhas japonesas de aposta), ruas cheias de prostitutas e salões de baile. Watanabe pede a um pianista que toque “A vida é curta, apaixonem-se donzelas” e canta ele próprio a música, fazendo com que todos, inclusive a plateia do cinema, se quedem em absoluta perplexidade. Aqui, Takashi Shimura é inesquecível.
Procurado por uma colega do trabalho, que está se demitindo e precisa do seu carimbo para autenticar sua demissão, Watanabe começa a sair com a moça para jantares e passeios e tem com ela o grande insight da sua vida: sempre é possível fazer algo significativo. Voltando ao seu trabalho, o chefe resolve atender a uma antiga reivindicação de moradores de um bairro: eliminar uma fossa a céu aberto, construindo ali um parque infantil.
Os últimos cinquenta minutos do filme se passam no funeral de Watanabe, onde é contada, em sucessivos flashbacks, a sua epopeia pelos departamentos da prefeitura para que eles façam aquilo para o qual são pagos para fazer. Realizado, o mestre canta, de forma solene, a música “A vida é curta”, sentado em um balanço do parque, sob uma nevasca, e morre suavemente.

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