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- A Carruagem Fantasma é maldição inevitável
A Carruagem Fantasma é um filme mudo de 1921 que impressiona pela sua consistência, trilha sonora, uso recorrente do flashback – uma técnica ainda recente em filmes –, além de efeitos especiais. Tomadas em dupla exposição, habilmente registradas pela cinematografia de Julius Jaenzon e pelo diretor Victor Sjöström, retratam espíritos se desprendendo dos corpos. A história começa na véspera do Ano Novo, com a bondosa enfermeira do Exército da Salvação, irmã Edit (Astrid Holm), em seu leito de morte com pneumonia. Mesmo em seus últimos momentos, ela insiste que precisa ver David Holm (o próprio Sjöström) porque quer se assegurar de que salvou sua alma. No cemitério da cidade, David, um homem sem escrúpulos que abandonou sua família pelo álcool, bebe com dois amigos e fala do seu companheiro Georges (Tore Svennberg) que desapareceu no dia 31 de dezembro do ano anterior. Descobrimos depois que ele na verdade morreu naquele dia e que essa ocorrência sujeita as pessoas a uma condenação. Quem morre no último dia do ano deve conduzir a carruagem da morte pelos próximos doze meses. David descobre isso da pior maneira possível. Ao discutir com os amigos, ele acaba assassinado e é o próprio Georges, como o condutor do sinistro veículo, que lhe transfere a maldição. Mas, antes disso, o antigo companheiro leva David a um tour por todos os erros cometidos no passado. Em uma série de flashbacks, testemunhamos todos os tormentos do bêbado à sua família, a ponto de sua mulher (Hilda Borgström) não querer continuar vivendo. Vemos também todo o sofrimento de Edit, empenhada há um ano em salvar a alma do alcoólatra, chegando mesmo a ser infectada por ele pela doença que está a lhe tirar a vida. No último momento, face a face com o espectro que a levará ao mundo dos mortos, a salvacionista ainda tenta um último milagre. A película macabra foi assistida por uma criança chamada Ingmar Bergman que, anos mais tarde, convidaria Sjöström para seu filme Morangos Silvestres , coincidentemente sobre a morte.
- O Irlandês: pai de família e assassino
“Nenhum filme bom é longo demais”, dizia o maior crítico de cinema de todos os tempos, Roger Ebert. E isso pode ser comprovado em O Irlandês , a mais recente obra-prima de Martin Scorsese, que, em suas três horas e meia de exibição, encanta, surpreende e proporciona aquele tipo de experiência que só as grandes obras de arte entregam. Baseado no livro I Heard You Paint Houses , de Charles Brandt, o roteiro conta a vida do “irlandês” Frank Sheeran (Robert De Niro), conhecido por participar da relação promíscua entre os sindicatos americanos das décadas de 1960 e 1970 com o crime organizado. Na obra literária, Sheeran alega ter matado Jimmy Hoffa (Al Pacino), considerado o maior líder sindical dos EUA. Com a liberdade concedida pela Netflix, um dos produtores do filme, Scorsese tece uma colagem de memórias de Sheeran com direito a cenas lentas que servem de fio condutor para a narrativa: uma longa viagem de carro com seu compadre Russell Bufalino (Joe Pesci) e suas esposas, entre Filadélfia e Detroit, para o casamento de uma sobrinha deste. O advogado Bufalino é uma espécie de mentor de Sheeran, e foi o responsável por apresentá-lo aos principais chefões da máfia da cidade, Felix DiTullio (Bobby Cannavale) e o “Gentle Don”, Angelo Bruno (Harvey Keitel). Cada um desses personagens é apresentado com uma legenda informando como será sua morte. A narrativa é um passeio que tem início na década de 1940, e apresenta a maior parte dos episódios nas décadas de 50, 60 e 70. Embora o elemento-chave do livro seja a morte do icônico presidente do sindicato International Brotherhood of Teamsters, o filme foca no relacionamento entre Sheeran, Hoffa (que desapareceu e nunca foi encontrado) e Bufalino. No final do filme, a história retorna ao corredor da casa de repouso onde o outrora poderoso “pintor de paredes” (código usado pelos mafiosos para definir os matadores profissionais) acaba de rezar com um jovem padre. Sheeran pede ao religioso que, ao sair, deixe a porta entreaberta, talvez na esperança de receber um perdão de suas filhas.
- A Baleia é o próprio peso de existir
A Baleia é um filme asfixiante e perturbador, que se passa em um ambiente com pouca luz. Um dos motivos para esse convite à angústia é a câmera do diretor de fotografia Matthew Labatique que, guiada pela mão conhecidamente autodestrutiva de Darren Aronofsky, evita a todo custo qualquer tipo de cena externa. A jornada do protagonista Charlie (Brendan Fraser) vai, no máximo até a varanda, mas jamais sai. Na maior parte do tempo, o diretor se mantém fiel à peça de teatro de Samuel D. Hunter, não só quanto à cenografia, mas também quanto ao estilo de palco, como se assistíssemos a uma apresentação ao vivo. Por isso, a sensação vivida pelo professor de estar preso em casa e, em última instância, ao seu corpo, é vivida por todos nós no cinema. Charlie dá aulas on-line de redação para trabalhos universitários e nenhum dos alunos conseguem vê-lo porque ele desativa a câmera do seu laptop. Logo descobrimos que o homem sempre foi grandão, mas, após o suicídio do seu amante, sua relação com a comida “saiu de controle”. As consequências são: pressão alta, arritmia cardíaca e sérias dificuldades de locomoção. O filme se torna um exercício de cumplicidade onde compartilhamos a corporeidade de Charlie, desde sua respiração abafada e seus olhos ternos e tristes, até detalhes de sua anatomia deformada pela obesidade, que chegam a ser repugnantes. A história de A Baleia acontece em uma semana decisiva, na qual diversas visitas acontecem para tentar mudar o destino do personagem: sua amiga e cuidadora Liz (Hong Chau), um jovem missionário chato chamado Thomas (Ty Simpkins) e sua filha Ellie — da qual Charlie se afastou — vivida com ferocidade pré-adolescente por Sadie Sink. " Baleia" não é apenas uma metáfora para o corpo agigantado de Charlie, mas se refere a um trabalho escolar sobre Moby Dick, que o professor guarda como uma espécie de talismã. A forma como a pessoa que escreveu o texto, só revelada no final do filme, fala dos problemas do personagem Ishmael como se descrevesse a própria vida de Charlie.
- Assassinos da Lua das Flores é magnífico
Assistir ao lançamento de uma obra-prima cinematográfica é uma emoção indescritível, e, quando assinada por um diretor como Martin Scorsese , é como um mergulho em uma paisagem desconhecida, porém inebriante. Assassinos da Lua das Flores é ao mesmo tempo romance, faroeste, drama, filme policial e até filme de mistério. Todos esses gêneros fluem e se entrelaçam nas 3 horas de 26 minutos de exibição, desde que o veterano de guerra, mas ainda jovem Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) desembarca na estação ferroviária de Fairfax, Oklahoma, em busca de uma nova vida. Logo, ele será recebido pelo tio William Hale (o sempre fantástico Robert De Niro), um próspero fazendeiro de gado, conhecido como “o Rei das Colinas Osage”, uma tribo indígena expulsa do Kansas e que, por ironia do destino, descobriu petróleo naquela região, tornando o grupo étnico, o mais rico do mundo no início do século XX. A preocupação de Hale é saber se o sobrinho está saudável e se gosta de mulheres, e de dinheiro. Obtendo sua confirmação, ele diz que os Osage são “as pessoas mais refinadas, mais ricas e mais bonitas da terra de Deus”. Amor e morte na Lua das Flores Na esteira desse conselho, mas também por puro encantamento mútuo , Ernest conhece e se casa com Mollie Kyle (a maravilhosa Lily Gladstone), uma mulher osage que mora em sua casa, com a mãe doente, Lizzie Q (Tantoo Cardinal). Com isso, o rapaz entra na linha de sucessão de propriedade da riquíssima propriedade da moça. O romance multifacetado entre os dois jamais deixa transparecer qualquer interesse escuso, embora as irmãs de Mollie tenham todas morrido em circunstâncias violentas e inexplicáveis, deixando os maridos como herdeiros de uma grande fortuna . Essa sucessão de supostos crimes acaba desembocando em uma grande investigação federal, envolvendo o poderoso J. Edgar Hoover, primeiro diretor do FBI, que envia a Oklahoma o agente Tom White (Jesse Plemons). O resultado das investigações, que é claro no livro de mesmo nome no qual o filme se baseia, torna-se um tanto controverso para quem o assiste, não porque seja inesperado, mas porque a habilidade de Scorsese em não se conformar às convenções nos deixa totalmente perplexos.
- Argentina, 1985 é uma nação voltando dramaticamente à democracia
Como se fosse um documentário de época, Argentina, 1985 traz uma reconstituição do cenário do país em uma fotografia na proporção de aspecto de 1,66:1, com a qual o experiente cinematografista Javier Juliá consegue imprimir uma sensação claustrofóbica (não por acaso) nas cenas internas. Nas externas, a iluminação natural e indireta imprime uma atmosfera realista. Lançada em um período onde vários grupos de orientação fascista têm assumido posições de poder, a obra de Santiago Mitre consegue retratar a situação asfixiante da população da Argentina, recém-saída de uma ditadura de sete anos. O retorno à normalidade democrática era ainda ameaçada pelo medo de uma ala resistente do exército. Divisor de águas desse momento sombrio da história argentina, o julgamento feito por uma corte civil tem difícil missão: processar os chefes militares que governavam o país durante os chamados anos de terror, em que pessoas desapareciam de suas casas, para serem torturadas ou mortas. Para desempenhar o papel de acusador, é escolhido o promotor-chefe Carlos Enrique Strassera, vivido no filme por Ricardo Darín. Nem um pouco heroico, o funcionário público vive em um apartamento modesto com sua esposa Silvia (Alejandra Flechner, fantástica) e os filhos Veronica (Gina Mastronicola) e Javier (Santiago Armas Estevaren). Na formação de sua equipe, Strassera logo percebe que a maioria dos advogados existentes se enquadra nas categorias, “morto”, “fascista” ou “superfascista”. Após nomear como co-conselheiro o jovem idealista Luis Moreno Ocampo (interpretado pelo ótimo Peter Lanzani), o acusador acaba optando por um verdadeiro “exército de Brancaleone” formado por jovens advogados recém-formados. Após esse prelúdio, que mescla cenas familiares e dos bastidores da formação da equipe, o filme atinge o seu ponto dramático durante o julgamento, quando traz à tona os relatos avassaladores de sequestro, tortura e assassinato. Um dos mais impactantes — feito por Adriana Calvo de Laborde (Laura Paredes) — conta como ela foi torturada durante seu trabalho de parto.
- Há algo triste em Aftersun
Há algo triste e perturbador em Aftersun , o singelo filme de estreIa de Charlotte Wells. Mas a presença de uma filmadora de vídeo e a ausência de telefones celulares indicam que a história ocorre no passado, e é um registro feito por um pai e uma filha, passando férias na Turquia. No início, a garota Sophie (Frank Corio) diz que acabou de completar 11 anos e seu pai fará, daí a dois dias, “131” . Percebemos, pelas imagens embaralhadas, que alguém está rebobinando a fita de videocassete, desde a despedida dos dois, que ocorre evidentemente no final do filme, até o princípio. É um momento extremamente feliz entre o jovem pai, Calum (Paul Mescal), que não vive mais com Sophie, e sua mãe. Então, de onde vem toda a tristeza que o filme nos passa? Não há como dar spoiler simplesmente porque não há motivo aparente para isso. Os dias se sucedem entre preguiçosos repousos à beira da piscina (sem descuidar do protetor solar), mergulhos de snorkel e jantares com direito a músicas antigas. A única moderna (para a época do filme) é Losing My Religion , cantada por Sophie em um karaokê. Chateada porque seu pai recusou-se a cantar com ela, Sophie não volta com ele para o hotel e passa o resto da noite com um bando de adolescentes ingleses e termina com um coleguinha de sua idade, com quem normalmente joga arcade. Sozinho, Calum caminha em direção às ondas. Última dança Pensamos que algo grave pode ocorrer nessa noite. Sophie, à beira da adolescência, se acha adulta e independente. Calum, que se confessa surpreso por ter chegado aos 30 anos, em um conversa com um instrutor de mergulho, transpira calma, mas pratica Tai Chi Chuan (uma técnica chinesa para aliviar o estresse) e lê livros de autoajuda. Frequentemente assistimos a cenas em um rave com luz estroboscóbica onde uma mulher (que depois identificamos como a Sophie adulta, interpretada por Celia Rowlson-Hall ) tenta abraçar Calum no escuro, mas ele foge. Não por acaso, na cena final da viagem, Calum é quem convence Sophie a dançar com ele a música Under Pressure, com destaque para os versos onde David Bowie e Fred Mercury repetem: “Esta é nossa última dança”.
- Ainda Estou Aqui é contido e devastador
Ainda Estou Aqui não é um filme fácil de ser assistido, pela angústia que evoca e pelo desamparo que expõe. No entanto, é obrigatório, principalmente para os saudosistas de uma época que não viveram, e alardeiam ter sido “boa” para o Brasil. Não foi. Desde o primeiro momento, em que a dona de casa Eunice (Fernanda Torres) nada nas águas calmas do mar da praia do Leblon, no Rio de Janeiro, um helicóptero militar, fazendo um voo rasante, escurece a paisagem até então tranquila, com o ruído do seu rotor, como uma metáfora. O roteiro é baseado em uma história real, do livro homônimo do filme , escrito pelo filho de dona Eunice, Marcelo Rubens Paiva, e relata os últimos momentos do seu pai, o ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva. Pai bonachão (Selton Mello se parece fisicamente com ele), de classe média alta, Rubens tem uma vida tranquila, economicamente estável e muitos projetos imobiliários em andamento. A casa está sempre festa, com muitos amigos, danças, bebidas, bons charutos e viagens internacionais. Dentro desse cenário feliz, Eunice intui que algo está acontecendo e teme cada vez que Rubens recebe ligações misteriosas. A ameaça se manifesta No dia 20 de janeiro de 1971, a ameaça se materializa na forma de um grupo de homens armados que chega do nada, invade a casa, manipula discos e livros do casal e “convida” Rubens a prestar depoimento no quartel do Exército. A fotografia matizada e nervosa de Adrian Tejido se torna estática e sombria. Eunice e a filha Eliana (Luiza Kosovski), de 15 anos, são levadas ao DOI-CODI, onde ficamos literalmente no escuro , até que a protagonista retornar para casa, sem o marido. A partir daí, Fernanda Torres se torna Maria Lucrécia Eunice Facciolla, uma das muitas mulheres que encararam a ditadura militar, e lideraram a luta contra as manipulações de informações para ocultar o destino dos prisioneiros, torturados e assassinados. A luta de Eunice só tem um fechamento 25 anos depois , quando, em 1996, ela conseguiu um atestado de óbito e o reconhecimento da morte de seu marido pela ditadura.

















