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- Jurado nº 2: entre a culpa e a condenção
Jurado nº 2 , que rumores apontam como o último filme dirigido por Clint Eastwood, é uma obra que expressa inconformismo com a forma pela qual a justiça é feita nos Estados Unidos. No roteiro, às vezes cínico, de Jonathan A. Abrams o próprio sistema judiciário é julgado pela forma como interesses próprios se sobrepõem. Isso vai desde o jurado Justin (Nicholas Hoult), que pretende voltar logo para casa, pois sua esposa Allison (Zoey Deutch) está prestes a ter um bebê, como a promotora Faith (Toni Collette), que pretende “fechar” logo o caso, pois está em campanha eleitoral. Ao chegar ao tribunal em Savannah, Geórgia, Justin está preocupado com a esposa, que teve uma gravidez frustrada anteriormente. Ele se concentra e torce para uma unanimidade no júri, até perceber que o culpado pelo atropelamento da vítima do crime pode ter sido ele próprio . Em recuperação do alcoolismo, Justin estava no bar onde o réu, James (Gabriel Basso) teve uma séria discussão com sua namorada Kendell (Francesca Eastwood, filha do diretor) em uma noite chuvosa. Ela saiu sozinha para voltar para casa, ele a seguiu em sua caminhonete, e algum tempo depois ela foi encontrada morta. Eastwood faz tudo para “atrasar” o veredito O crime é reconstruído através das versões da promotora Faith e do advogado de defesa Eric (Chris Messina), enquanto Justin lida com seus próprios flashbacks fragmentados da noite do suposto homicídio. Quando os jurados são chamados a deliberar, o que se percebe é que os dois lados têm argumentos fracos: embora o réu seja claramente suspeito, a autópsia é inconclusiva e a única testemunha não se revela confiável. Eastwood faz tudo para “atrasar” o consenso do júri, onde o policial aposentado Harold (J.K. Simmons) começa a duvidar da versão da promotora, enquanto o jurado Marcus (Cedric Yarbrough) tem certeza da culpa do réu. Atormentado pelas suas memórias, Justin se opõe à condenação rápida, mas sem se expor, pois sabe que ninguém acreditaria que ele não bebeu naquela noite . Após o julgamento ser concluído, a vida volta ao normal para todos, Faith vai até a casa de Justin. Ele atende à porta, e os dois ficam frente a frente em silêncio.
- Jojo Rabbit só quer ser um bom nazista
Jojo Rabbit (Roman Griffin Davis) é um garoto de dez anos que vive na Alemanha nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Por isso, é compreensível e muito normal que o seu modelo a seguir seja um personagem considerado heroico pela nação alemã da época: Adolf Hitler (Taika Waititi), que é inclusive seu amigo imaginário. Lógico que criar uma visão caricata do Führer pode ser problemático dentro de um filme atual, mas o diretor Taika Waititi conduz a narrativa de forma a superpor cenas absurdas e engraçadas com momentos sérios e de extrema violência. Acostumados a uma visão consciente e esclarecida sobre as barbaridades do Terceiro Reich, tendemos a chamar de banalidade o tratamento dispensado ao patético Hitler quando, na verdade, é da aparente inocência do líder alemão que nasce sua força, tanto para crianças quanto para multidões infantilizadas que o idolatram como um bom companheiro. Assim, Johannes tenta se inserir na juventude nazista, mas sua natureza pura e inocente não se adapta naturalmente à cultura de destruição do inimigo que caracteriza a ideologia da cultura dominante na época. Entretanto, o bullying é atenuado pela ambiguidade do comandante do campo de treinamento, o capitão Klenzendorf (Sam Rockwell), às vezes implacável outras, sensível. Quando, após um acidente com uma granada, Jojo é obrigado a ficar em casa, ele faz uma descoberta que é a grande virada do filme: sua mãe Rosie (Scarlett Johansson) esconde uma judia, a jovem Elsa ((Thomasin McKenzie), em um armário do quarto do sótão. A introdução da personagem cria sérias questões para o garoto, e gostar da moradora clandestina é a menor delas. De repente, o aspirante a nazista se torna íntimo na vida real de uma menina que ele pensa que é monstro e começa a se afastar de um monstro que ele pensa que é amigo. E, o que é pior, sem poder denunciá-la para não colocar sua mãe em risco. Naturalmente, a história segue o seu curso e tudo o que tem que acontecer acontece. Sem as contradições que o movem, o final do filme é um tanto melancólico.
- A Carruagem Fantasma é maldição inevitável
A Carruagem Fantasma é um filme mudo de 1921 que impressiona pela sua consistência, trilha sonora, uso recorrente do flashback – uma técnica ainda recente em filmes –, além de efeitos especiais. Tomadas em dupla exposição, habilmente registradas pela cinematografia de Julius Jaenzon e pelo diretor Victor Sjöström, retratam espíritos se desprendendo dos corpos. A história começa na véspera do Ano Novo, com a bondosa enfermeira do Exército da Salvação, irmã Edit (Astrid Holm), em seu leito de morte com pneumonia. Mesmo em seus últimos momentos, ela insiste que precisa ver David Holm (o próprio Sjöström) porque quer se assegurar de que salvou sua alma. No cemitério da cidade, David, um homem sem escrúpulos que abandonou sua família pelo álcool, bebe com dois amigos e fala do seu companheiro Georges (Tore Svennberg) que desapareceu no dia 31 de dezembro do ano anterior. Descobrimos depois que ele na verdade morreu naquele dia e que essa ocorrência sujeita as pessoas a uma condenação. Quem morre no último dia do ano deve conduzir a carruagem da morte pelos próximos doze meses. David descobre isso da pior maneira possível. Ao discutir com os amigos, ele acaba assassinado e é o próprio Georges, como o condutor do sinistro veículo, que lhe transfere a maldição. Mas, antes disso, o antigo companheiro leva David a um tour por todos os erros cometidos no passado. Em uma série de flashbacks, testemunhamos todos os tormentos do bêbado à sua família, a ponto de sua mulher (Hilda Borgström) não querer continuar vivendo. Vemos também todo o sofrimento de Edit, empenhada há um ano em salvar a alma do alcoólatra, chegando mesmo a ser infectada por ele pela doença que está a lhe tirar a vida. No último momento, face a face com o espectro que a levará ao mundo dos mortos, a salvacionista ainda tenta um último milagre. A película macabra foi assistida por uma criança chamada Ingmar Bergman que, anos mais tarde, convidaria Sjöström para seu filme Morangos Silvestres , coincidentemente sobre a morte.
- Joias Brutas é um caos constante
Joias Brutas é um filme asfixiante, com uma narrativa rápida, diálogos superpostos e abordagem sempre surpreendente. Não há como prever movimentos e os atores agem como se não houvesse um script, dificilmente se escutando uns aos outros, exatamente como fazemos em nosso mundo real. A maioria das cenas passa pela perspectiva de Howard Ratner (Adam Sandler). Logo somos apresentados a esse protagonista explosivo de dentro para fora: a cena inicial é uma colonoscopia. Ação contínua, Howard está nas ruas de Nova York a caminho de sua joalheria, esbarrando e interagindo com todo tipo de vigaristas, larápios e donos de lojas de penhores abusivas. A chegada em sua loja revela mais situações caóticas: entre os clientes, há dois bandidos contratados pelo seu cunhado Arno (Eric Bogosian), com o qual Howard tem uma dívida que jamais paga porque está sempre apostando o dinheiro que consegue ganhar. Dividindo sua vida entre a esposa (em fase de separação) Dinah (Idina Menzel) e sua amante Julia (Julia Fox), o empresário judeu parece estar constantemente no fundo do poço, e cavando. Sua última esperança é um último McGuffin: um pedaço de rocha incrustado por opalas multicoloridas que vemos no início do filme ter saído de uma mina na Etiópia. Levado pelo sócio comercial Demany (LaKeith Stanfield), o astro de basquetebol Kevin Garnett (o próprio) se encanta com a joia e pede para levá-la ao jogo dos Celtics como um amuleto; deixa em garantia o seu anel de campeão da NBA. Howard não tem dúvidas: penhora o anel e aposta tudo no jogo em que Garnett irá atuar. Quanto Howard espera receber o anel de volta, para levá-lo ao suposto leilão milionário, o atleta não devolve. Com isso, o joalheiro não consegue recuperar o anel, além de as represálias dos cobradores de Arno irem se tornando cada vez mais pessoais e violentas. O resultado é um humor característico dos irmãos Safdies, que dirigem o filme. Embora cativante, não é uma estética capaz de provocar riso, mas somente angústia. Se o final era mais ou menos esperado, nos parece pouco lapidado.
- Assassinos da Lua das Flores é magnífico
Assistir ao lançamento de uma obra-prima cinematográfica é uma emoção indescritível, e, quando assinada por um diretor como Martin Scorsese , é como um mergulho em uma paisagem desconhecida, porém inebriante. Assassinos da Lua das Flores é ao mesmo tempo romance, faroeste, drama, filme policial e até filme de mistério. Todos esses gêneros fluem e se entrelaçam nas 3 horas de 26 minutos de exibição, desde que o veterano de guerra, mas ainda jovem Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) desembarca na estação ferroviária de Fairfax, Oklahoma, em busca de uma nova vida. Logo, ele será recebido pelo tio William Hale (o sempre fantástico Robert De Niro), um próspero fazendeiro de gado, conhecido como “o Rei das Colinas Osage”, uma tribo indígena expulsa do Kansas e que, por ironia do destino, descobriu petróleo naquela região, tornando o grupo étnico, o mais rico do mundo no início do século XX. A preocupação de Hale é saber se o sobrinho está saudável e se gosta de mulheres, e de dinheiro. Obtendo sua confirmação, ele diz que os Osage são “as pessoas mais refinadas, mais ricas e mais bonitas da terra de Deus”. Amor e morte na Lua das Flores Na esteira desse conselho, mas também por puro encantamento mútuo , Ernest conhece e se casa com Mollie Kyle (a maravilhosa Lily Gladstone), uma mulher osage que mora em sua casa, com a mãe doente, Lizzie Q (Tantoo Cardinal). Com isso, o rapaz entra na linha de sucessão de propriedade da riquíssima propriedade da moça. O romance multifacetado entre os dois jamais deixa transparecer qualquer interesse escuso, embora as irmãs de Mollie tenham todas morrido em circunstâncias violentas e inexplicáveis, deixando os maridos como herdeiros de uma grande fortuna . Essa sucessão de supostos crimes acaba desembocando em uma grande investigação federal, envolvendo o poderoso J. Edgar Hoover, primeiro diretor do FBI, que envia a Oklahoma o agente Tom White (Jesse Plemons). O resultado das investigações, que é claro no livro de mesmo nome no qual o filme se baseia, torna-se um tanto controverso para quem o assiste, não porque seja inesperado, mas porque a habilidade de Scorsese em não se conformar às convenções nos deixa totalmente perplexos.
- Há algo triste em Aftersun
Há algo triste e perturbador em Aftersun , o singelo filme de estreIa de Charlotte Wells. Mas a presença de uma filmadora de vídeo e a ausência de telefones celulares indicam que a história ocorre no passado, e é um registro feito por um pai e uma filha, passando férias na Turquia. No início, a garota Sophie (Frank Corio) diz que acabou de completar 11 anos e seu pai fará, daí a dois dias, “131” . Percebemos, pelas imagens embaralhadas, que alguém está rebobinando a fita de videocassete, desde a despedida dos dois, que ocorre evidentemente no final do filme, até o princípio. É um momento extremamente feliz entre o jovem pai, Calum (Paul Mescal), que não vive mais com Sophie, e sua mãe. Então, de onde vem toda a tristeza que o filme nos passa? Não há como dar spoiler simplesmente porque não há motivo aparente para isso. Os dias se sucedem entre preguiçosos repousos à beira da piscina (sem descuidar do protetor solar), mergulhos de snorkel e jantares com direito a músicas antigas. A única moderna (para a época do filme) é Losing My Religion , cantada por Sophie em um karaokê. Chateada porque seu pai recusou-se a cantar com ela, Sophie não volta com ele para o hotel e passa o resto da noite com um bando de adolescentes ingleses e termina com um coleguinha de sua idade, com quem normalmente joga arcade. Sozinho, Calum caminha em direção às ondas. Última dança Pensamos que algo grave pode ocorrer nessa noite. Sophie, à beira da adolescência, se acha adulta e independente. Calum, que se confessa surpreso por ter chegado aos 30 anos, em um conversa com um instrutor de mergulho, transpira calma, mas pratica Tai Chi Chuan (uma técnica chinesa para aliviar o estresse) e lê livros de autoajuda. Frequentemente assistimos a cenas em um rave com luz estroboscóbica onde uma mulher (que depois identificamos como a Sophie adulta, interpretada por Celia Rowlson-Hall ) tenta abraçar Calum no escuro, mas ele foge. Não por acaso, na cena final da viagem, Calum é quem convence Sophie a dançar com ele a música Under Pressure, com destaque para os versos onde David Bowie e Fred Mercury repetem: “Esta é nossa última dança”.
- Ainda Estou Aqui é contido e devastador
Ainda Estou Aqui não é um filme fácil de ser assistido, pela angústia que evoca e pelo desamparo que expõe. No entanto, é obrigatório, principalmente para os saudosistas de uma época que não viveram, e alardeiam ter sido “boa” para o Brasil. Não foi. Desde o primeiro momento, em que a dona de casa Eunice (Fernanda Torres) nada nas águas calmas do mar da praia do Leblon, no Rio de Janeiro, um helicóptero militar, fazendo um voo rasante, escurece a paisagem até então tranquila, com o ruído do seu rotor, como uma metáfora. O roteiro é baseado em uma história real, do livro homônimo do filme , escrito pelo filho de dona Eunice, Marcelo Rubens Paiva, e relata os últimos momentos do seu pai, o ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva. Pai bonachão (Selton Mello se parece fisicamente com ele), de classe média alta, Rubens tem uma vida tranquila, economicamente estável e muitos projetos imobiliários em andamento. A casa está sempre festa, com muitos amigos, danças, bebidas, bons charutos e viagens internacionais. Dentro desse cenário feliz, Eunice intui que algo está acontecendo e teme cada vez que Rubens recebe ligações misteriosas. A ameaça se manifesta No dia 20 de janeiro de 1971, a ameaça se materializa na forma de um grupo de homens armados que chega do nada, invade a casa, manipula discos e livros do casal e “convida” Rubens a prestar depoimento no quartel do Exército. A fotografia matizada e nervosa de Adrian Tejido se torna estática e sombria. Eunice e a filha Eliana (Luiza Kosovski), de 15 anos, são levadas ao DOI-CODI, onde ficamos literalmente no escuro , até que a protagonista retornar para casa, sem o marido. A partir daí, Fernanda Torres se torna Maria Lucrécia Eunice Facciolla, uma das muitas mulheres que encararam a ditadura militar, e lideraram a luta contra as manipulações de informações para ocultar o destino dos prisioneiros, torturados e assassinados. A luta de Eunice só tem um fechamento 25 anos depois , quando, em 1996, ela conseguiu um atestado de óbito e o reconhecimento da morte de seu marido pela ditadura.
- A Baleia é o próprio peso de existir
A Baleia é um filme asfixiante e perturbador, que se passa em um ambiente com pouca luz. Um dos motivos para esse convite à angústia é a câmera do diretor de fotografia Matthew Labatique que, guiada pela mão conhecidamente autodestrutiva de Darren Aronofsky, evita a todo custo qualquer tipo de cena externa. A jornada do protagonista Charlie (Brendan Fraser) vai, no máximo até a varanda, mas jamais sai. Na maior parte do tempo, o diretor se mantém fiel à peça de teatro de Samuel D. Hunter, não só quanto à cenografia, mas também quanto ao estilo de palco, como se assistíssemos a uma apresentação ao vivo. Por isso, a sensação vivida pelo professor de estar preso em casa e, em última instância, ao seu corpo, é vivida por todos nós no cinema. Charlie dá aulas on-line de redação para trabalhos universitários e nenhum dos alunos conseguem vê-lo porque ele desativa a câmera do seu laptop. Logo descobrimos que o homem sempre foi grandão, mas, após o suicídio do seu amante, sua relação com a comida “saiu de controle”. As consequências são: pressão alta, arritmia cardíaca e sérias dificuldades de locomoção. O filme se torna um exercício de cumplicidade onde compartilhamos a corporeidade de Charlie, desde sua respiração abafada e seus olhos ternos e tristes, até detalhes de sua anatomia deformada pela obesidade, que chegam a ser repugnantes. A história de A Baleia acontece em uma semana decisiva, na qual diversas visitas acontecem para tentar mudar o destino do personagem: sua amiga e cuidadora Liz (Hong Chau), um jovem missionário chato chamado Thomas (Ty Simpkins) e sua filha Ellie — da qual Charlie se afastou — vivida com ferocidade pré-adolescente por Sadie Sink. "Baleia" não é apenas uma metáfora para o corpo agigantado de Charlie, mas se refere a um trabalho escolar sobre Moby Dick, que o professor guarda como uma espécie de talismã. A forma como a pessoa que escreveu o texto, só revelada no final do filme, fala dos problemas do personagem Ishmael como se descrevesse a própria vida de Charlie.
- Argentina, 1985 é uma nação voltando dramaticamente à democracia
Como se fosse um documentário de época, Argentina, 1985 traz uma reconstituição do cenário do país em uma fotografia na proporção de aspecto de 1,66:1, com a qual o experiente cinematografista Javier Juliá consegue imprimir uma sensação claustrofóbica (não por acaso) nas cenas internas. Nas externas, a iluminação natural e indireta imprime uma atmosfera realista. Lançada em um período onde vários grupos de orientação fascista têm assumido posições de poder, a obra de Santiago Mitre consegue retratar a situação asfixiante da população da Argentina, recém-saída de uma ditadura de sete anos. O retorno à normalidade democrática era ainda ameaçada pelo medo de uma ala resistente do exército. Divisor de águas desse momento sombrio da história argentina, o julgamento feito por uma corte civil tem difícil missão: processar os chefes militares que governavam o país durante os chamados anos de terror, em que pessoas desapareciam de suas casas, para serem torturadas ou mortas. Para desempenhar o papel de acusador, é escolhido o promotor-chefe Carlos Enrique Strassera, vivido no filme por Ricardo Darín. Nem um pouco heroico, o funcionário público vive em um apartamento modesto com sua esposa Silvia (Alejandra Flechner, fantástica) e os filhos Veronica (Gina Mastronicola) e Javier (Santiago Armas Estevaren). Na formação de sua equipe, Strassera logo percebe que a maioria dos advogados existentes se enquadra nas categorias, “morto”, “fascista” ou “superfascista”. Após nomear como co-conselheiro o jovem idealista Luis Moreno Ocampo (interpretado pelo ótimo Peter Lanzani), o acusador acaba optando por um verdadeiro “exército de Brancaleone” formado por jovens advogados recém-formados. Após esse prelúdio, que mescla cenas familiares e dos bastidores da formação da equipe, o filme atinge o seu ponto dramático durante o julgamento, quando traz à tona os relatos avassaladores de sequestro, tortura e assassinato. Um dos mais impactantes — feito por Adriana Calvo de Laborde (Laura Paredes) — conta como ela foi torturada durante seu trabalho de parto.
- O Irlandês: pai de família e assassino
“Nenhum filme bom é longo demais”, dizia o maior crítico de cinema de todos os tempos, Roger Ebert. E isso pode ser comprovado em O Irlandês, a mais recente obra-prima de Martin Scorsese, que, em suas três horas e meia de exibição, encanta, surpreende e proporciona aquele tipo de experiência que só as grandes obras de arte entregam. Baseado no livro I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, o roteiro conta a vida do “irlandês” Frank Sheeran (Robert De Niro), conhecido por participar da relação promíscua entre os sindicatos americanos das décadas de 1960 e 1970 com o crime organizado. Na obra literária, Sheeran alega ter matado Jimmy Hoffa (Al Pacino), considerado o maior líder sindical dos EUA. Com a liberdade concedida pela Netflix, um dos produtores do filme, Scorsese tece uma colagem de memórias de Sheeran com direito a cenas lentas que servem de fio condutor para a narrativa: uma longa viagem de carro com seu compadre Russell Bufalino (Joe Pesci) e suas esposas, entre Filadélfia e Detroit, para o casamento de uma sobrinha deste. O advogado Bufalino é uma espécie de mentor de Sheeran, e foi o responsável por apresentá-lo aos principais chefões da máfia da cidade, Felix DiTullio (Bobby Cannavale) e o “Gentle Don”, Angelo Bruno (Harvey Keitel). Cada um desses personagens é apresentado com uma legenda informando como será sua morte. A narrativa é um passeio que tem início na década de 1940, e apresenta a maior parte dos episódios nas décadas de 50, 60 e 70. Embora o elemento-chave do livro seja a morte do icônico presidente do sindicato International Brotherhood of Teamsters, o filme foca no relacionamento entre Sheeran, Hoffa (que desapareceu e nunca foi encontrado) e Bufalino. No final do filme, a história retorna ao corredor da casa de repouso onde o outrora poderoso “pintor de paredes” (código usado pelos mafiosos para definir os matadores profissionais) acaba de rezar com um jovem padre. Sheeran pede ao religioso que, ao sair, deixe a porta entreaberta, talvez na esperança de receber um perdão de suas filhas.
- Amarcord: tesão pela vida
Até Amarcord, o adjetivo felliniano costumava ser definido como “burlesco”, “alegórico”, “imagético”. Amarcord, que seria uma corruptela de mi recordo no dialeto de Rimini, cidade natal do diretor, introduziu cenas inspiradas na adolescência de Federico Fellini que, dizia ele, NÃO eram memórias, pelo menos conscientes, palpáveis. E essas coisas que não podem ser tocadas, como as le manine do início do filme (pequenos flocos que caem das árvores e dissolvem nas mãos das pessoas), são conteúdos simbolizados mas não expressos, como se fosse possível capturar em celuloide os sonhos, os chistes e os atos falhos de uma sessão de psicanálise. Magnífico, esse filme talvez seja uma das expressões mais emocionantes da perplexidade masculina ante as mulheres. Num encantamento mágico que beira o pavor, vemos esses seres estranhos que, à primeira vista, causam excitação e promessas, revelarem-se ameaças naturais, depósitos explosivos de estrogênio. Há quem diga que, sob uma repressão massiva da Igreja Católica e do fascismo da época, todos os homens regrediam a um estágio púbere, o que talvez possa explicar a ambiguidade de Titta (o rapaz que pode ser Fellini, vivido por Bruno Zanin) que, em contato com os seios gigantes da dona da tabacaria (Maria Antonietta Beluzzi), mais se assemelha a um bebê sufocando do que a um amante feliz. O que ocorria naquela pequena cidade dos anos 1930 é que homens se expressavam através de símbolos fálicos (o hino comunista na torre da igreja, o mural de flores compondo o rosto do Duce, o pavão na neve) a desafiar a natureza, ao passo que mulheres ERAM (são sempre) a natureza em si. Gradisca (Magali Noël), o grande objeto de desejo dos ragazzi, só se dava (literalmente) aos poderosos. A prostituta Volpina (Josiane Tanzilli), única pessoa não reprimida na vila, causava medo e nojo, e caminhava sozinha pela praia. O filme termina da forma que começou. Durante o casamento da Gradisca com um oficial fascista, as le manini retornam anunciando o início de nova primavera. Titta (Fellini?) já foi embora há algum tempo, dizem. Sem se aperceber do final da cerimônia, o acordeonista cego continua tocando a música inesquecível de Nino Rota. , #fellini #resenha
- A Pior Pessoa do Mundo é a mais doce
A Pior Pessoa do Mundo é uma dramédia dirigida com brilhantismo e sensibilidade extrema pelo norueguês Joachim Trier. Na cena inicial, Julie (Renate Reinsve) fuma e dedilha seu celular em um momento antecipado do Capítulo 2 (são 12 capítulos mais um prólogo e um epílogo). Como acontece na maior parte do filme, a protagonista está deslocada. “Sinto-me como uma espectadora da minha própria vida”, diz. Depois de cursar – e se desinteressar em seguida – por Medicina, Psicologia e Fotografia, Julie se torna balconista de uma livraria. Chegando aos trinta anos, todas as expectativas da juventude se transformam de repente em imperativos implacáveis da vida adulta: ter um emprego fixo, filhos, relacionamento estável entre outros padrões do status quo. Nesse mar de incertezas (há alguma certeza absoluta?), ela conhece Aksel (Anders Danielsen Lie), um famoso cartunista criador de um personagem politicamente incorreto. Dez anos mais velho do que Julie, ele logo propõe que os dois não fiquem juntos porque as prioridades de vida de ambos estarão sempre em descompasso. Ela aceita ir embora, e ele se apaixona. Os dois ficam juntos. Aksel se mostra um parceiro suficientemente bom, compreensivo e divertido, mas há algo na relação que não funciona, não pelo que eles fazem, mas pelo que ambos são. Isso deixa Julie às vezes à margem do que acontece, e ela tem coragem o bastante de ser arrebatadoramente imprudente e abandonar a situação em busca de uma felicidade pessoal, da qual ela mesma duvida. Em um desses momentos em que Julie está “fora do contexto” (aquela cena inicial), ela caminha pelas ruas e, entrando em uma festa de casamento onde não conhece ninguém, encontra Eivind (Herbert Nordrum). Com o compromisso de não trair seus parceiros, eles extravasam a paixão do momento em um hilário ritual de intimidades “permitidas”. Os capítulos se sucedem como um conjunto às vezes caótico de inícios e términos, pequenas vitórias e tragédias inesperadas que, como qualquer vida humana, é pleno de desilusões pelos planos que, inevitavelmente, jamais são cumpridos.