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- Lucky é a beleza do nada
Lucky , por retratar a vida de um veterano da Segunda Guerra Mundial, poderia ter a morte como motivo principal. No entanto, o que se vê nos 88 minutos é a vida. São os amigos, paisagens, pensamentos e manias desse velho ranzinza que não faz o menor esforço para agradar ninguém nem para cuidar de si próprio. Morador de uma desértica cidade no sul da Califórnia, Lucky, numa memorável interpretação de Harry Dean Stanton, leva uma vida metódica e frugal. Vive sozinho e acorda cedo, embora não saibamos a hora porque ele não acerta o seu relógio-despertador. Faz cinco exercícios de yoga e toma um copo de leite gelado, único conteúdo de sua geladeira e fuma o tempo todo. A rotina, que inclui uma ida à cafeteria para tomar café com leite e fazer palavras cruzadas, é quebrada no dia em que Lucky tem um desmaio. Esse fato, ao qual o médico local não dá muita importância, muda inteiramente a direção dos fatos, de mera crônica de costumes para uma reflexão sobre solidão e impermanência. No entanto, isso é feito de maneira leve. Cenas memoráveis acontecem: preocupada com o idoso, a garçonete Loretta vai à casa dele, onde acabam fumando maconha e assistindo a um show de Liberace na TV. Numa conversa com outro veterano de guerra, interpretado com extrema delicadeza por Tom Skerritt, Lucky, que era cozinheiro num navio de munições, ouve, emocionado, a história de uma garotinha japonesa e sua forma de encarar a morte. A partir desse episódio, Lucky resolve acertar o seu relógio-despertador. Uma música cantada com mariachis numa festa infantil serve para lembrar que o protagonista não se casou nem teve filhos. Naquela noite, no bar, após ouvir pela enésima vez a reclamação de seu amigo Howard sobre a fuga de seu jabuti Presidente Roosevelt, desafia a proprietária Elaine, acendendo um cigarro. Antes faz uma reflexão sobre a verdade da vida, afirmando que tudo e todos, inclusive os cigarros, irão desaparecer na escuridão e no vazio. Na cena final, Lucky sorri para o seu destino sem notar que o jabuti vem voltando sorrateiro para casa. #resenha #carrolllynch
- Ervas Flutuantes: sinfonia inesquecível
Os três ideogramas do kabuki , forma de teatro japonês retratado em Ervas Flutuantes , significam canto, dança e habilidade. O filme é tudo isso, e mais: a música, cinematografia e direção de arte são tão coordenadas que a obra se assemelha a uma sinfonia do tipo que costumamos cantarolar pelo resto de nossas vidas. Na vila de pescadores, onde a trama se passa, não há personagens grandiosos; é como se fossem pessoas do bairro vivendo as suas vidas no cotidiano. O protagonista, Komajuro, é um ator de meia idade que lidera a trupe de uma companhia de teatro decadente e itinerante, artistas conhecidos no Japão como “ervas flutuantes”. Chamado de mestre pelos demais componentes da equipe, o velho ator passa muito tempo na casa de saquê de Oyoshi, com quem teve um filho no passado. Komajuro se alegra com o rapaz, um funcionário dos correios que pensa que ele é seu tio. As constantes ausências despertam suspeitas, e posteriormente o ciúme, de sua atual companheira e estrela da companhia Sumiko, que descobre o segredo do mestre, e, repreendida duramente por este, contrata a jovem atriz Kayo para seduzir Kiyoshi, o filho de Komajuro. Essa trama conduz a consequências inesperadas, pois os dois jovens se apaixonam. Yasujiro Ozu conduz esses desencontros de uma forma peculiar, longe do dramalhão ocidental e bem mais econômico do que a ciclotimia das comédias românticas. A empatia com os personagens é conquistada através de um truque de direção: a maioria dos diálogos ocorrem sem que os personagens se olhem de frente. O olhar é geralmente dirigido diretamente à plateia. A cinematografia belíssima de Kazuo Miyagawa é feita numa posição inferior à dos atores. Entre as cenas, o diretor insere o que chamou de pillow shot, um pequeno vídeo de cerca de sete segundos, que permite ao espectador “recuperar sua calma”. Na cena final, Komajuro, como muitos maridos, dá um piti com sua companheira na estação de embarque. Aos poucos, se acalma, o trem parte, e ficamos com a música maravilhosa de Takanobu Saitô. #resenha #ozu
- Vingadores - Ultimato: infinito é uma questão de tempo
Vingadores: Ultimato é mais do que um filme. Nas suas três horas de projeção, o que se vê é um desfile de super-heróis e efeitos especiais, verdadeira homenagem à legião de fãs que, desde 2008, como numa grande série de TV, vêm acompanhando a saga. Quem é seguidor do Universo Marvel de HQ nas telas de cinema, sabe que, após metade da humanidade e a maioria dos heróis ter sido “apagada” pelo titã Thanos, as apostas em torno de uma possível revanche entre os sobreviventes e o possuidor das poderosas Joias do Infinito era uma questão de tempo. Os Vingadores remanescentes (Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva Negra, Máquina de Combate, Rocket e Nebula), ainda sem saber o paradeiro do Gavião Arqueiro, fazem uma viagem, com a Capitã Marvel, ao planeta onde está o titã, onde disputam uma batalha infrutífera pela recuperação das Joias do Infinito. Cinco anos depois, o Homem-Formiga retorna de sua viagem ao Reino Quântico, iniciada antes do “estalo” destruidor de Thanos, e encontra um mundo totalmente devastado, com navios e carros abandonados, ruas vazias e um memorial com nomes de milhares de mortos, inclusive o dele. Sua filha Cassie está viva, mas se tornou uma adolescente. Percebendo que viajou no tempo, Homem-Formiga apresenta a ideia aos Vingadores, a princípio rejeitada por ser improvável, embora não impossível segundo o Hulk. O cientista explica que, quando viajamos para o passado, este se torna o nosso futuro, enquanto nosso presente passa a ser o novo passado. Tendo o Capitão América e o Homem de Ferro como protagonistas, a equipe viaja no tempo, onde irão recuperar alguns conceitos caros ao heroísmo, como honra, sacrifício e tragédia. Os Vingadores, como descobriremos com o passar do tempo, são suscetíveis à força deste elemento e, diferentemente do que nos acostumamos a ver nas antigas revistas em quadrinhos, estão sujeitos à impermanência, como pode ser visto na batalha final, uma das cenas mais impressionantes já vistas nas telas. Entre as perdas, a mais triste, com certeza, foi a de Stan Lee. #resenha #russobrothers
- Uma Mulher Fantástica: convicção e realidades
Em Uma Mulher Fantástica , somos a princípio iludidos pelo diretor Sebastián Lelio a acreditar que o personagem principal do filme é Orlando, um empresário de meia-idade dono de uma confecção em Santiago no Chile. Pouco depois, somos apresentados à mulher com a qual está dividindo sua vida: a jovem cantora de salsa Marina Vidal, que se apresenta no clube do hotel Galeria, e que descobriremos ser também uma garçonete no dia a dia. Após um jantar romântico, o casal dança, falam de uma viagem às Cataratas do Iguaçu no Brasil e, de volta ao apartamento de Orlando, fazem amor e dormem tranquilamente, até que, no meio da noite, Orlando passal mal. Indo para o hospital, sofre uma queda na escada e é amparado por Marina que consegue levá-lo, mas não a tempo: o empresário morre de aneurisma. Confinada do lado de fora, numa área restrita com uma etiqueta com a inscrição “Area Sucia” (área suja), Marina é interrogada e investigada pelo médico antes de receber a notícia do falecimento do companheiro. O motivo da desconfiança é que a moça é transgênero e o seu documento de identidade ainda traz o seu nome masculino. A questão do filme não é Marina ser tratada “como se fosse” mulher. Ela se sabe mulher, tem plena convicção do amor de Orlando (ela havia se mudado recentemente para o apartamento), está em luto pela morte dele, e não tem tempo, nem paciência, nem desejo de ser questionada por questões a seu ver absolutamente irrelevantes para o seu momento de dor. Descobrirá, no entanto, para seu desespero, que a família anterior de Orlando, a começar pela ex-esposa Sonia, e o filho Bruno, apressam-se em afastá-la de tudo o que diz respeito ao empresário. A princípio pelo carro, depois o apartamento, e até mesmo a cadela Diabla que Marina se orgulha em ser um presente que recebeu do falecido. A câmera de Benjamin Echazarreta é nervosa, impaciente, algumas vezes alucinada, mostrando nuances de uma realidade que nos assusta. No final, algo é restituído a Marina. Dignificada pela sua própria convicção de direito ao respeito, segurança e sexualidade, Marina termina o filme cantando uma ária de Handel: Ombra mai fu (Nunca houve sombra). #lelio #resenha
- Interlúdio: belo, simples e natural
Interlúdio é com certeza o filme mais elegante de Hitchcock. É belo em função da cinematografia perfeita de Ted Tetzlaff, belíssimo pela presença inesquecível de Ingrid Bergman e, ao mesmo tempo, simples pelo roteiro de Ben Hecht, e quase natural pela atuação confortável de Cary Grant. Embora tenha como pano de fundo um cenário de espionagem internacional, no caso um complô nazista no Rio de Janeiro, a história gira em torno de um triângulo amoroso formado por Alicia, uma moça de reputação duvidosa que, apesar disso, ou talvez por causa disso, é amada por dois homens. Um se destrói porque é obrigado a convencê-la a se entregar ao outro para desvendar o mistério. O outro igualmente se destrói porque confia cegamente nela, se descuidando das regras de segurança que deveria seguir. O que mais impressiona em Interlúdio é que, apesar da periculosidade dos espiões alemães, e dos assassinatos e tentativas de assassinato ocorridos, não se vê uma arma, e nem uma única gota de sangue. Além disso, no desenvolvimento da trama, não faltam os famosos truques de Hitchcock, os MacGuffins, elementos do roteiro com os quais a audiência se preocupa, mas que não dizem respeito a absolutamente nada. Um exemplo disso é a descoberta feita pelo agente Devlin de uma substância radioativa escondida em uma série de garrafas da adega de Sebastian, então marido de Alicia. A existência da substância, quando ainda nem se sabia do que foram feitas as bombas de Hiroshima e Nagasaki (o filme é de 1946), é absolutamente irrelevante. Outras cenas memoráveis ocorrem. Como a visão cambaleante, a partir do ponto de vista de uma Alicia com ressaca, através de um copo de Alka Seltzer. Quando Devlin tenta salvar sua amada, que está sendo envenenada pela sogra nazista, ele sobe uma escada em poucos segundos. Ao descerem, o número de degraus parece multiplicado por dez. No final, quando esperamos um tiroteio ou alguma perseguição épica, um senhor gentil surge na porta da mansão e convida Sebastian: ─ Alex, poderia entrar por favor? Quero falar com você ─ e ele vai. #resenha #hitchcock
- Ó pai ó: onipresente sensualidade
Ó pai ó é uma expressão característica da cidade de Salvador, na Bahia, que pode ser traduzida por “olha só isso”. E para o que se olha na tela é um desfile de estereótipos urbanos no último dia de carnaval. No entanto, o que era para ser previsível surpreende e, através da música e da onipresente sensualidade, os personagens ganham contornos próprios, dignificam-se, e aqui e ali alçam voos sempre certeiros ainda que curtos. Moradores de um cortiço no Largo do Pelourinho, os personagens têm uma característica comum: quando atuam no plano horizontal, são representações turísticas: o folião, a baiana, o garanhão, a transexual, a vidente dos búzios, a crente, a própria escadaria da Igreja do Bonfim. No plano vertical, são cidadãos que sobrevivem numa sociedade desigual: o artista que não fez sucesso, a recepcionista que quer ir para a Europa, a “esposa” de europeu devolvida, o estelionatário desajeitado, o policial justiceiro trabalhando “por fora” para os comerciantes. Embora não existam protagonismos, o pintor Roque, que é também cantor, compositor e dançarino, participa dos melhores momentos do filme, o primeiro logo no início, quando um bloco carnavalesco formado por quase todos do elenco resolve desfilar pelas ruas de um Pelourinho vazio. Expulsos do boteco da engraçada Neusão, Roque canta a belíssima “Vem meu amor” num momento verdadeiramente épico. A segunda cena marcante, também envolvendo Roque, é uma discussão dele com o trambiqueiro Boca (que parece englobar todos os vícios do filme). Neurótico e racista, Boca resolve ofender o pintor chamando-o de “negro”, mas Roque faz um discurso apaixonado em defesa da negritude. A única pessoa que não se alinha à normalidade sensual-carnavalesca é Dona Joana, uma evangélica que é proprietária do cortiço e que, por vingança (divina?) contra os “pecadores, macumbeiros e maconheiros”, fecha a água do prédio, deixando os moradores enlouquecidos. No final, alegria, tristeza, tragédia e romance se confundem nas ruas inundadas pelos participantes do bloco Araketu. Em seguida, o Olodum protesta. #resenha #gardenberg
- Pulp Fiction: filme fodástico
Pulp Fiction: tempo de violência talvez seja um dos mais claros exemplos de filme fodástico. Iconoclasta, revolucionário, poético e inteligente, trata-se de um desses raros momentos em que o diretor faz cinema para cinéfilos e para todos que apreciam uma boa história policial, noir, mafiosa ou perversa. À maneira de Hitchcock, Tarantino insere diálogos que nada têm a ver com a história. Diferente da maioria dos roteiros, o filme não fala de si, não se explica, e raramente o que se diz se relaciona com o que se faz. A narrativa é dividida em três histórias que se conectam entre si, mas a trama não respeita os limites da temporalidade, de forma que a primeira delas, chamada “Vincent Vega e a esposa de Marcellus Wallace” tem um prólogo que corresponde à parte final do filme, chamada “O problema da Bonnie”. A história intermediária “O relógio dourado” apresenta pontos de intersecção com as outras duas e mostra a saga do boxeador Butch que, mesmo recebendo uma boa grana de Marcellus para “entregar” a luta, resolve trair o gangster e apostar o dinheiro recebido em si mesmo. A questão agora é fugir o mais rápido possível, junto com sua namorada francesa Fabienne para tentar sobreviver e gastar a fortuna perigosamente conquistada. No episódio que abre e no que encerra o filme, ocorrem as aventuras e desventuras de Vince e Jules, os capangas do chefe Marcellus que discutem assuntos diversos como massagem nos pés, hambúrgueres, animais imundos, intervenção divina, enquanto cumprem suas “missões”. Numa delas, quando vão recuperar a famosa maleta de Marcellus (com seu conteúdo misterioso) em poder de um bando de estudantes, discutem exaustivamente sobre as leis sobre drogas em Amsterdã e o nome do sanduíche Quarteirão em Paris, até que Jules se lembra do que foram fazer: ─ Vamos entrar no personagem! ─ e invadem. Tarantino, que também atua no último episódio, consegue obter interpretações inesquecíveis de Samuel L. Jackson, John Travolta, Bruce Willis e Uma Thurman. Uma obra-prima de humor, terror, aventura e ação. Tudo junto. #resenha #tarantino
- Viver: há vida antes da morte?
A grande preocupação de resenhistas de filmes, que é oferecer spoilers , parece inevitável em Viver , de Akira Kurosawa, que tem início com uma radiografia do estômago do protagonista da história e um alerta de que “a esta altura, ele ainda não sabe que tem câncer”. De fato, o sr. Watanabe, chefe do setor de relações públicas da prefeitura de Tóquio, parece não perceber o que se passa à sua volta. Obcecado pela tarefa de aplicar o seu carimbo para autenticar os documentos que passam pelas suas mãos, o que faz na realidade é não fazer nada, ignorando ou solenemente “enrolando” os contribuintes que comparecem ao setor para fazer reclamações. Faltando ao serviço pela primeira vez em muitos anos, o sr. Watanabe recebe a notícia de sua doença, e se desespera, menos pelo anúncio evasivo do médico, mas sim pela exata descrição de seus sintomas por um homem inoportuno na sala de espera que lhe dá menos de três meses de vida (o médico não fala, mas acredita que o homem viverá pelo menos mais seis meses). Voltando mais cedo para casa, após quase ter sido atropelado por um caminhão, o velho chefe fica ajoelhado no escuro, até escutar sem querer a conversa de seu filho e sua nora que planejam, sem saber da doença, usar a herança e a poupança do pai. A cena que fecha a primeira meia hora de filme é muito triste e marcante: o idoso chora debaixo do cobertor para ninguém ouvir enquanto a câmera mostra na parede uma condecoração por vinte e cinco anos de ótimos serviços prestados”. Sozinho, o burocrata resolve beber e, em um bar, encontra um escritor que resolve guiá-lo por lugares onde o homem nunca tivera coragem de viver até aquele momento: salas de pachinko (maquininhas japonesas de aposta), ruas cheias de prostitutas e salões de baile. Watanabe pede a um pianista que toque “A vida é curta, apaixonem-se donzelas” e canta ele próprio a música, fazendo com que todos, inclusive a plateia do cinema, se quedem em absoluta perplexidade. Aqui, Takashi Shimura é inesquecível. Procurado por uma colega do trabalho, que está se demitindo e precisa do seu carimbo para autenticar sua demissão, Watanabe começa a sair com a moça para jantares e passeios e tem com ela o grande insight da sua vida: sempre é possível fazer algo significativo. Voltando ao seu trabalho, o chefe resolve atender a uma antiga reivindicação de moradores de um bairro: eliminar uma fossa a céu aberto, construindo ali um parque infantil. Os últimos cinquenta minutos do filme se passam no funeral de Watanabe, onde é contada, em sucessivos flashbacks, a sua epopeia pelos departamentos da prefeitura para que eles façam aquilo para o qual são pagos para fazer. Realizado, o mestre canta, de forma solene, a música “A vida é curta”, sentado em um balanço do parque, sob uma nevasca, e morre suavemente. #resenha #kurosawa
- Três anúncios de um crime: ódio e dor legítimos
Em Três anúncios para um crime , Martin McDonagh atinge situações-limite dentro de um universo emocional que se pretende muitas vezes previsível. A verdade é que comportamentos controlados ou socialmente corretos existem apenas na imaginação ou em roteiros de filmes anteriores à década de 1970. O ranço, no entanto, permanece e é comum nos surpreendermos com o ódio existente no interior da protagonista Mildred Hayes, uma mãe de uma cidadezinha do interior destroçada emocionalmente pela morte brutal da filha Angela, estuprada ao morrer. Frances McDormand dá um tom humano, ou demasiadamente humano, para uma mulher que resolve atirar toda a dor que sente internamente para o ambiente externo: aluga três cartazes publicitários para cobrar do xerife Willoughby providências para o inquérito do assassinato, que ela julga “esfriado” sete meses depois. O xerife, vivido por Woody Harrelson de uma forma a que não estamos acostumados, é uma pessoa compassiva, vivendo ele próprio o drama de um câncer que irá matá-lo em breve. Dessa forma, a antítese da sra. Hayes é representada pelo policial Dixon, beberrão, violento, capaz de jogar pessoas pela janela e ainda ser considerado frouxo por sua mãe preconceituosa. Dentro desse cenário de dores e violência, há raros momentos de ternura, como no momento em que, discutindo com Mildred, Willoughby tosse sangue e é chamado por ela de “babe”. Em outra cena, Mildred recebe a visita inesperada de um filhote de cervo e brinca com o fato de aquilo ser uma tentativa de simular uma reencarnação que ela sabe não existir. Porém, chora. O xerife decide tirar a própria vida, o que acirra os ânimos da pequena comunidade de Ebbing, onde, como ocorre na maioria das cidades do interior, ódio e dor parecem ser palavrões. No final do filme, o que se afigurava impossível acontece e os antagonistas Dixon e Mildred unem forças para eliminar um possível, embora improvável, suspeito. Da própria incerteza, mas principalmente da certeza de uma violação da lei que Hayes presumia desconhecida, surge o primeiro riso de Mildred. #resenha #mcdonagh
- As regras do jogo: afetos à flor da pele
Um dos melhores filmes já produzidos, A Regra do Jogo, de 1939, começa com uma recepção ao piloto Andre Jurieu que chega de uma solitária travessia do Atlântico apenas dez anos depois do voo do famoso Charles Lindbergh. Embora recepcionado por uma multidão e autoridades, o então herói nacional choraminga na sua entrevista para o rádio porque a sua amada não veio recebê-lo no aeroporto. A amada, por ele mas não dele, é Christine, esposa do marquês Robert de Las Chesnaye, milionário e apaixonado por pequenos brinquedos mecânicos. Como ela e Jurieu passaram muitos momentos juntos, o piloto acredita que a coisa certa a fazer, pelas regras do jogo, é comunicarem ao marido que estão juntos. O marquês, por sua vez, está se separando de sua amante de longa data, Genevieve, porque, da mesma forma, quer seguir as regras do jogo com a esposa. De Paris, a ação é transferida para a estação de caça de Robert na La Coliniére, onde se hospedam todos: maridos, esposas, amantes, pretendentes e até um caçador ilegal, Marceau, que é contratado pelo marquês e logo se torna íntimo da camareira da marquesa, Lisette, esposa de outro personagem que também é seguidor das regras, o guarda-caça Schumacher que mais parece um comande militar alemão. Com tantos afetos à flor da pele, seria inevitável que cenas farsescas ocorressem. Em qualquer filme, o diretor coloca um personagem que provoca encontros e desencontros. Neste filme, o próprio diretor é o personagem que transita entre todos os romances e diálogos: ele é o bonachão Octave, amigo do piloto, da esposa, do marquês, da camareira, da amante e, finalmente, revela-se também apaixonado por Christine. Quando acontece um assassinato (ou acidente?) no final do filme, a plateia praticamente não se assusta, pois numa cena anterior assistiu a um impressionante massacre. Todos os convidados caminham alegremente pela floresta, cada um armado com uma carabina, e matam dezenas de coelhos e faisões. Porém, o máximo que a morte de um ser humano causa é um alerta para que todos os convidados voltem para dentro do castelo para não contraírem alguma doença. #resenha #renoir
- Mãe! Sensações de horror, perplexidade e agonia
Numa casa de estilo vitoriano, isolada em um vale cercado por floresta definida como “paradisíaca”, vive um casal em isolamento intencional. Como o filme não nomeia seus personagens, podemos dizer que mãe é a jovem esposa d'Ele, um poeta que tenta reescrever uma obra que o leve a sucessos anteriores. Ela está no meio do trabalho de restauração da velha casa, praticamente destruída por um incêndio que só deixou intacta uma pequena pedra preciosa, que o poeta mantém em sua mesa de trabalho como uma relíquia. Na forma das tradicionais donas de casa, mãe sobe e desce escadas, muitas vezes descalça, fazendo todas as coisas, desde limpar a casa até emassar paredes. A ela conectamos nossa percepção, pois, com exceção de duas cenas, é através dela que passa toda a narrativa do filme. Um médico chega à casa, seguido de sua esposa e, um pouco mais tarde, por seus alucinados filhos. Mãe jamais recebe uma explicação sobre quem são aquelas pessoas ou porque elas se encontram ali na sua casa, quebrando todas as regras e a integridade da casa. À princípio, pensamos se tratar de uma farsa, pelo calor das discussões e a atuação niilista do homem e da mulher, vividos com brilhantismo por Ed Harris e Michelle Pfeiffer. Quando ocorre a primeira morte violenta, e a pia da cozinha vem abaixo, sabemos que algo inexplicável ocorrerá no filme do que um simples drama psicológico. Após uma breve calmaria, em que, pela primeira vez o marido atende um desejo da mãe e, finalmente, a engravida, tudo parece fluir de forma tranquila, e o poeta completa a sua outra criação, um emocionante poema. O final do filme é recheado de ação que nem o mais alucinado espectador seria capaz de prever: multidões invadem e destroem o interior da casa, grupos rivais se enfrentam, luta armada, antropofagia e caos. Há símbolos apocalípticos desconexos por toda parte. Não se trata mais de um relato: são apenas sensações, vividas com horror, perplexidade e agonia. Mas, percebendo que não há mais salvação em meio à turba descontrolada, mãe vai ao porão da casa, e completa (ou inicia) um ciclo vital. #resenha #aronofsky
- Viver a vida: uma experiência cinemática
O lema de Filmes Fodásticos, tirado de uma frase de Roger Ebert, afirma que os filmes são janelas nas caixas de espaço/tempo em que vivemos. Portanto, ao olhar através dessas janelas, estaremos por alguns momentos fora da caixa. Viver a vida de Jean-Luc Godard é um exemplo clássico de filme fora da caixa. Realizado em 1962, no auge da nouvelle vague do cinema francês, a obra pode ser considerada mais uma experiência cinemática do que propriamente cinematográfica. A grande emoção vem da câmera nervosa de Raoul Cultard que joga o espectador dentro da cena. Baseado num roteiro banal, que seria considerado extremamente preconceituoso nos dias atuais, o filme conta a história de Nana, representada pela então esposa de Godard, a modelo Anna Karina. É o rosto dela que abre o filme como se posasse para retratos, de perfil e de frente, ao som da música de Michel Legrand que, de acordo com o desejo do diretor, simplesmente para, e reaparece na cena seguinte. São doze capítulos, com títulos longos que revelam antecipadamente o que vai acontecer. Pelo que se sabe, todos foram filmados em tomadas únicas, o que significa que as tomadas são transformadas diretamente em planos, sem qualquer tipo de edição. Nana é uma jovem parisiense que acaba de se separar de Paul com quem deixou o filho do casal, de quem ela pede fotos, numa cena filmada no balcão de um café por trás dos personagens. Ou seja, vemos apenas suas nucas e um reflexo embaçado no espelho. Embora nada se saiba sobre suas motivações, a narrativa se foca em Nana. Ela joga fliperama e trabalha numa loja de discos, mas tem problemas financeiros, que a obrigam a tentar roubar a chave de seu apartamento, retida pela porteira possivelmente por falta de pagamento. Passando por uma rua onde prostitutas trabalham, Nana aceita o convite de um homem e começa a se prostituir. A princípio, ela se recusa a beijar o cliente, mas depois acompanhamos seu progresso, narrado como se fosse um documentário sobre a prostituição em Paris. Quando se encanta por um jovem estudante, a mulher resolve deixar “a vida” (nome que se dá à prostituição na França), mas o seu gigolô certamente não concorda com isso, e toma medidas drásticas para recuperar sua marchandise . #resenha #godard






















